Comparados aos povos do Ocidente, os árabes são bastante conservadores. Isso pudemos notar pelos assuntos de suas conversas, por suas vestimentas, programas de televisão e pela leitura de jornais e revistas locais. Embora, como se diz, Cairo seja uma espécie de “Paris do Oriente Médio”, e o Egito – junto com a Turquia – muito mais liberal que qualquer outro país muçulmano, lá os costumes são bem diferentes daqueles encontrados no Brasil.  Embora haja muita influência do Ocidente, seja através das parabólicas que se multiplicam nos telhados das residências, seja através das músicas de rock ou dos filmes americanos na televisão, o Egito procura preservar a cultura árabe e a religião muçulmana com bastante rigor. Mesmo nos jornais mais liberais, pode-se observar as duras críticas feitas ao modus vivendi do Ocidente – principalmente dos EUA -, onde existe a degradação dos costumes, o incentivo à violência, drogas e apelo sexual. Pode-se dizer que é uma guerra de cultura que está apenas começando: Ocidente versus Oriente. Livro relacionado: Coisas que se vê na televisão brasileira jamais entrarão no Egito. Novelas brasileiras, talvez só A Escrava Isaura. Tieta, Pátria Minha, ou as peladas “garotas do Fantástico”, nem pensar. As produções egípcias não mostram sequer beijos. Filmes americanos, às vezes, mostram alguns beijos, mas as cenas mais fortes são simplesmente cortadas. Ou então, a tela fica negra, sem imagens, só com o som. O filme de Franco Zefirelli que vimos – Romeu e Julieta – tinha um pouco mais da metade do tempo normal.  Apesar da qualidade precária da televisão egípcia, que é estatal, ela apresenta uma grande variedade de assuntos culturais que não se costuma ver no Brasil, ao menos nas emissoras mais famosas. Na apresentação de filmes, a TV não mostra nenhum comercial. Não há aquela quebra de interesse na estória. Em compensação, em alguns vídeos que vimos, a cada 5 minutos havia um comercial. Era de lascar.  Devido à diferença cultural, nem por nada que no início sentimos um “choque” quando presenciamos alguns costumes egípcios, bastante estranhos sob o ponto de vista ocidental. No Egito eu vim aprender que, para o muçulmano, a mão direita é usada para fins nobres, ao passo que a mão esquerda é considerada “suja”, por ser utilizada para fins negativos e menos nobres, como lavar o ânus. A seguir são descritos alguns costumes egípcios que chamaram nossa atenção enquanto dávamos os primeiros passos naquele exótico país. O beijo entre os homens  Em público, os beijos entre casais são proibidos. A desobediência a essa lei pode levar o indivíduo à delegacia de polícia. Ou à casa do pai da moça, para explicações, se ela não for casada.  Enquanto é proibido o beijo entre casais, para não despertar “imaginações impuras”, é comum o beijo entre os homens: três beijinhos na face, às vezes bem molhados… O adido militar, na primeira vez em que se apresentou às autoridades militares egípcias, ficou corado de vergonha, todo vermelho, quando um general sapecou um beijo em seu rosto. Um não, três… Mas esses beijos entre os homens não chegam a causar a mesma estranheza no Ocidente como aqueles beijos na boca tipo “desentupidor de pia” de antigos figurões soviéticos, que as manchetes estamparam em volta do mundo.  Existe o costume egípcio de os homens andarem de mãos e braços dados. Às vezes, só com o dedo “mindinho”. Víamos, no início, com bastante surpresa oficiais ou praças, tanto das Forças Armadas quanto da Polícia, andarem de braços dados, mesmo fardados.  Depois nos acostumamos com isso e eu não via nenhum mal em meu filho Wagner, às vezes, em plena rua, quando fazíamos as costumeiras caminhadas pelo Cairo, também me dar seu braço. Era um sinal de aconchego e amor filial que eu não podia negar só por causa dos nossos costumes diferentes no Ocidente.  As moças egípcias, em princípio, casam virgens. Não é permitido à moça solteira manter conversa com homens. Nas escolas, os meninos sentam em bancos separados das meninas. Segundo os árabes, “a mulher é uma flor tenra que precisa ser preservada”. Por isso o uso do purdah (véu), que esconde os cabelos das mulheres. A mulher muçulmana casada, no Egito, não mostra seus cabelos a não ser para o marido e pessoas da família.  Há a nequab, uma vestimenta islâmica que cobre as mulheres da cabeça aos pés, usada por uma quantidade razoável de mulheres no Egito, mas que não é normal. Com essas vestimentas, apenas são vistos os olhos das mulheres. A gente as chamava de “mascaradas”, algumas até apresentando figuras grotescas, quando colocavam óculos “fundo de garrafa” por sobre a “máscara”. Dava até para se assustar, quando encontradas, inopinadamente, numa dobra de esquina.  É bom lembrarmos que há 50 anos atrás, no Brasil, as mulheres também andavam com vestidos longos, até os calcanhares, e com véus nas cabeças. E a cor predominante era a preta, como posso ainda hoje observar em uma foto de minha avó junto com minha bisavó. Como as mulheres ocidentais mudaram de traje em tão pouco tempo…  Há muitos egípcios que se vestem como os ocidentais, tanto homens quanto mulheres. Mas é grande o número de egípcios, de ambos os sexos, que vestem as longas túnicas, as galabeyias, principalmente os da classe mais pobre, como os beduínos que vêm do interior. Talvez agora tenha aumentado o número de mulheres com vestidos longos, pela imposição dos fanáticos muçulmanos fundamentalistas. Enquanto Muamar Khadafi, da Líbia, se veste espalhafatosamente, cheio de panos esvoaçando ao vento, o Presidente egípcio, Hosni Mubarak, nunca é visto usando uma galabeyia.  Há mulheres que vestem galabeyias pretas, que é uma demonstração de fidelidade ao marido. O desconforto deve ser imenso, pelo calor que provoca. O ideal seria usar túnica branca, como os sauditas, que reflete a luz e, portanto, o calor. Era comum vermos mulheres, aos bandos, todas vestidas de preto. O que levou nossas crianças a comentarem: “Olha só, quantas Perpétuas!” (da novela Tieta).  Antes da ocupação francesa, todos os egípcios usavam barba e bigode. Como os franceses tinham o rosto escanhoado, o antigo costume começou a cair em desuso, embora com alguma resistência.  Antigamente, uma punição exemplar para os egípcios era cortar seu bigode à força, o que causava uma vergonha enorme. No tempo dos mamelucos, homens sem bigode não eram tolerados a entrar nas cortes de justiça e criminosos eram forçados a raspar o bigode e mandados a andar no lombo de burros, de costas, pelas ruas da cidade, para aumentar a vergonha.  Observa-se, ainda hoje, no Egito uma grande quantidade de homens que cultivam seu bigode com bastante esmero. Geralmente são bigodes enormes, como os do ex-jogador de futebol Rivelino. Quanto à barba, esta é hoje cultivada, principalmente, pelos sacerdotes coptas e pelos fundamentalistas islâmicos. O ouro das mulheres  Há muita pobreza no Cairo. Mas a quantidade de ouro que se vê em toda a cidade, em lojas simples ou sofisticadas, nos dá a real dimensão que esse precioso metal tem na vida árabe. As mulheres são extremamente vaidosas, se adornam com colares, pulseiras e brincos enormes, carnavalescos. Não colocam uma barra de ouro em cada orelha porque iria rasgar…  É comum mulheres, as mais ricas, usarem uma penca de pulseiras de ouro em cada braço. O ouro tem, para essas mulheres, o mesmo que para nós tem a função da caderneta de poupança ou a guarda de dólares: é um patrimônio que a mulher leva consigo durante a vida e serve para fazer face a algum imprevisto, como doença ou separação do marido. No aperto, é só ir ao joalheiro e vender as jóias. Quando o dinheiro sobra, passa a comprar mais ouro. Desde quando é pedida em noivado, com autorização do pai, a moça já começa a receber jóias do futuro marido. Nos dias de festas, que no Egito são muitas, ela continua a receber seu cobiçado ouro, assim como no dia do aniversário.  Mesmo as meninas e senhoras mais pobres não deixam de usar suas jóias. Ficávamos admirados em observar muitas dessas mulheres, mal vestidas, de chinelos e pés sujos, porém exibindo seu reluzente patrimônio.  O uso ostensivo de jóias no Egito é possível pela inexistência de assaltantes. A lei é rigorosa, existe a pena de morte e não há essa demagogia, como no Brasil, em que grupos de defesa dos direitos humanos geralmente só se lembram de defender bandidos. O mês do ramadã  Com 30 dias de duração, o nono mês do calendário árabe, o ramadã, é o mês das preces e do jejum. O fiel muçulmano, durante o dia, fica proibido de comer ou ingerir qualquer tipo de líquido, a não ser por ordem médica. O crente deve também se portar de modo mais pacato, conservar os olhos baixos durante o dia, para não “sofrer tentação” ao avistar uma mulher. A relação sexual também é proibida durante o dia. Outros pecados que devem ser evitados nesse mês são a luta e a perda da calma. A guerra também deve ser evitada, como diz o Corão, embora ela possa ser feita por uma “causa justa”, como foi a Guerra do Ramadã, de 1973, contra Israel…  O jejum pode ser quebrado com o anúncio dos alto-falantes nas mesquitas, ao anoitecer, ou então o fiel deve saber pelos jornais, rádio ou TV quando está apto a fazer a primeira refeição do dia, o ifthar. O horário, dia após dia, varia um pouco.  Como o calendário árabe é lunar, o início do ramadã é sempre uma incógnita. Pode ser num dia ou somente em outro. Depende da acuidade visual do religioso para observar a ro’ya, ou seja, a lua no início da fase do quarto crescente. Ao menos é isso que acontece em países mais conservadores, como a Arábia Saudita. No Egito, ficávamos aguardando, até próximo do início do ramadã, para que informassem a data precisa, embora os astrônomos, com muita antecedência, pudessem prever o aparecimento da lua quarto crescente.  No Cairo, uma característica única dentre os países muçulmanos, o anúncio do fim e do início do jejum, nos dias do ramadã, é feito com o disparo de um velho canhão alemão, que pode ser ouvido em muitos pontos da cidade. O canhão encontra-se numa colina perto da Cidadela de Saladino.  Como o descrito no jornal Al-Ahram nº 3 de 14 Mar 91, a tradição começou em 1811, por puro acidente. O canhão era tão velho que o Pasha (Governador) Muhammad Áli decidiu parar de usá-lo e fazer dele um monumento. Enquanto os soldados estavam limpando o canhão, este acidentalmente disparou um tiro. Os egípcios ficaram muito felizes, pois pensaram que era o sinal dado para a quebra do jejum, à tardinha. Os grandes sheikhs (xeques) foram agradecer ao Governador e este decidiu continuar a disparar o canhão no início e no fim do jejum. Desde então, isto veio a se estabelecer como tradição. O canhão também dispara em dias de festas e feriados nacionais.  O ifthar é a primeira refeição à noitinha, após o jejum. Os mais pobres podem se servir em mesas que são arrumadas junto a muitas ruas da cidade. Cena interessante é você observar aquele povo humilde sentado à mesa, com mais de uma hora de antecedência, para garantir o lugar, com os talheres prontos para entrar em ação, como se fosse uma competição, e só iniciando a refeição com a devida autorização dos alto-falantes das mesquitas.  Um ifthar tradicional começa com um prato de tâmaras embebidas em água ou leite, como o prescrito pela sunna (ensino religioso). Muitas famílias irão incluir no menu um prato de fuul (espécie de feijão com limão e óleo de oliva), assim como uma refeição normal que pode conter sopa, carne, ave, peixe e uma grande variedade de legumes.  Se durante o dia a barriga ficou a perigo, à noite, após o ifthar, outras refeições são feitas, até alta madrugada. É a época em que mais se come no Egito – ao menos entre aquelas pessoas das classes mais altas – e muitos religiosos criticam isso, justamente por ser o mês do jejum. Açúcar e farinha de trigo você tem que fazer estoque em casa, para se prevenir contra a falta desses produtos em quase todos os armazéns da cidade.  O sohour, às 3 horas da manhã, é normalmente a última refeição, geralmente uma comida ligeira à base de iogurte e frutas, depois do que as pessoas vão dormir.  O brasileiro Zagalo, quando dirigia a seleção de futebol dos Emirados Árabes Unidos, teve um problema bastante difícil de resolver, ao assumir o trabalho na preparação para a Copa do Mundo na Itália, em 1990. Os treinos durante o ramadã só podiam ser feitos à noite, pois, com a barriga vazia, os jogadores de modo algum se prontificavam a obedecer seu treinador…  Crianças do pré-escolar acreditam que o ramadã é uma pessoa, como Papai Noel, que virá trazer as lanternas e os doces, além dos presentes que são comuns nessa época.  A fanus (lanterna) é um costume unicamente egípcio e data da época dos fatímidas. Quando Al-Muz Lidin Allah Al-Fatimi transferiu a capital muçulmana para o Cairo, na sua chegada, à noite, os cairenses saíram às ruas para recebê-lo com lampiões coloridos para iluminar as ruas que o levaram até seu palácio.  No início, a lanterna era feita de vidro colorido e vela, com formatos hexagonal ou octogonal. Hoje, as lanternas utilizam pilhas elétricas e pequenas lâmpadas para emitir luz através do material plástico. Durante o ramadã, pudemos observar os efeitos especiais dessas lanternas, com suas luzes coloridas em todos os pontos do Cairo, nas lojas, nas ruas, nas casas.  As crianças ficam impacientes em começar a jejuar e participar dos rituais do ramadã. Embora a idade “oficial” seja de 9 anos, muitas crianças de 7 anos procuram imitar seus pais durante alguns dias. Muitos estrangeiros residentes no Cairo também jejuam alguns dias, durante o ramadã, independentemente de sua religião. Que é, sem dúvida, bastante saudável para o corpo